quarta-feira, 24 de março de 2010

O que agroecologia tem a ver com saúde?


Para começar a elucidar essa questão é preciso entender que os dois termos envolvidos na pergunta – agroecologia e saúde - são campos amplos e multifacetados, compreendendo vários conceitos e entendimentos. Faz-se necessário então explicitar de que agroecologia e de que saúde estamos tratando aqui.

Como abordado anteriormente, partimos de um entendimento de agroecologia que ultrapassa a simples troca do pacote tecnológico convencional pelo orgânico. A agroecologia que buscamos construir é aquela mais afinada com as idéias de Guzmán e Molina (apud Caporal e Costabeber, 2007) sendo entendida como um

"campo de estudos que pretende o manejo ecológico dos recursos naturais, para - através de uma ação social coletiva de caráter participativo, de um enfoque holístico e de uma estratégia sistêmica – reconduzir o curso alterado da coevolução social e ecológica, mediante um controle das forças produtivas que estanque, seletivamente, as formas degradantes e espoliadoras da natureza e da sociedade."

Portanto a agroecologia tal qual entendida por nós prevê, num contraponto ao modelo de produção agrícola tradicional, tanto a preservação e manutenção do meio ambiente quanto à problematização de questões referentes à qualidade de vida e organização de trabalho dos agricultores.

Qualidade de vida é conceito intrinsecamente ligado à saúde. Quando pensamos em viver com qualidade chegamos a determinantes que compõem um conceito ampliado de saúde. Esse conceito, que norteia a organização do Sistema Único de Saúde (SUS), expresso na lei 8080 de 1990, propõe um olhar para a saúde como além da ausência de doenças, compreendendo fatores como a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais. Essa ampliação do foco leva a uma reorientação das políticas de saúde, passando da exclusiva assistência à idéia de promoção de saúde como central na organização dos serviços.

É com base nesse ideário e na leitura da conjuntura política, social e econômica de nosso país que vem sendo discutidas políticas públicas que contemplam a população do campo em iniciativas intersetoriais e interdisciplinares que aproximam a saúde de outros saberes, dentre os quais a Agroecologia.

A Política de Saúde para a População do Campo, ainda em fase de formulação, surge da demanda de movimentos sociais e entidades do campo como o Movimento dos Sem Terra (MST), Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR), Movimento das Mulheres do Campo Brasil (MMC) e Instituto dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do Vale do Jequitinhonha (ITAVALE). Essa política busca contemplar os segmentos populacionais de agricultores (as) familiares, trabalhadores (as) rurais assalariados (as) e aqueles (as) em regime de trabalho temporário, os (as) trabalhadores (as) rurais assentados, os (as) trabalhadores (as) rurais que não têm acesso a terra – famílias de trabalhadores (as) rurais de assentamentos e acampamentos rurais, populações que residem em comunidades remanescentes de quilombos, em reservas extrativistas, em vilas, povoados, população ribeirinha, populações atingidas por barragens, comunidades tradicionais e trabalhadores que moram na periferia das cidades e que trabalham no campo. Reconhecendo as desigualdades sociais e disparidades regionais trazidas pelo atual modelo de desenvolvimento econômico, a política visa elevar o padrão de vida da população por meio de ações intersetoriais, de geração de emprego e renda, de saneamento ambiental, de habitação, de eletrificação rural, de educação, de cultura e lazer, de acesso a terra e de transporte digno. Nesse sentido, prevê a organização e estruturação da rede de serviços do SUS para a população do campo, buscando desenvolver ações que possibilitem a quebra de resistências e o enfrentamento de questões como: combate ao uso de agrotóxicos, implantação da política de fitoterápicos, acesso humanizado, combate as formas de discriminação e defesa de um modelo auto-sustentado. (Política de Saúde para a População do Campo, 2004)

A interface entre saúde e ambiente vem sendo tratada na Política Nacional de Saúde Ambiental, também em fase de construção. Essa política traz à tona a inseparabilidade entre ambiente e saúde (diante da multiplicidade de fatores que determinam a saúde e o bem-estar dos indivíduos) e sinaliza a necessidade de um aprimoramento do modelo de atenção do SUS, entendendo que saúde se faz também (e fundamentalmente) fora da prática dos serviços de saúde. Surge então a busca pelo desenvolvimento de ambientes saudáveis, pautada em “intervenções relaciona­das à interação entre a saúde humana e os fatores do meio ambiente natural e antrópico que a deter­minam, condicionam e influenciam, com vistas a melhorar a qualidade de vida do ser humano sob o ponto de vista da sustentabilidade”. (Subsídios para a Construção da Política Nacional de Saúde Ambiental , 2007)

Retomando a pergunta inicial, tanto a proposta de saúde quanto a de agroecologia trabalham com os conceitos ampliados. Percebemos que a busca pela saúde, assim, como a de agroecologia não se resume a uma intervenção individual, mas compreende uma ação coletiva. Assim como a saúde não se resume a ausência de doença, a agroecologia não se resume a produção e comercialização agrícola.

Desta forma, o trabalho de Extensão desenvolvido no Instituto Agroecológico busca diagnosticar, problematizar e buscar intervenções que contemplem a complexidade das relações entre saúde, trabalho e modelo produção rural. Entendendo o controle social e a cidadania como elementos centrais, o trabalho tem se pautado na busca do empoderamento dos agricultores no que diz respeito às relações em que estão inseridos, para que possam reivindicar e acessar seus direitos.

Referências Bibliográficas

· Brasil. Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, pro­teção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 20 set. 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm

· Brasil. Política de Saúde para a População do Campo, 2004. Disponível em: http://dtr2004.saude.gov.br/susdeaz/instrumento/arquivo/12_Politica_pop_campo.pdf

· Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde, 2006. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/portaria687_2006_anexo1.pdf

· Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Subsídios para construção da Política Nacional de Saúde Ambiental, Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2007. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/politica_saude_ambiental.pdf

· CAPORAL, F. R.; COSTABEBER, J. A.. Agroecologia: alguns conceitos e princípios. Brasília: MDA/SAF/DATER-IICA, 2004.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Um breve debate sobre extensão ou De que extensionista estamos falando?


Desde sua fundação, o Instituto Agroecológico (IA) tem a extensão como base da sua prática profissional. Hoje, vinculado ao USF (Universidade Sem Fronteiras) dialoga com a extensão universitária, e no contato com os trabalhadores rurais desenvolve a extensão rural. Durante nossos 4 anos, questionamos nossa forma de intervenção, levantando perguntas sobre o papel do extensionista: a que a extensão se destina? Qual sua penetração e efetividade? Para com quem é o compromisso do extensionista? Enfim, o que pode a extensão?

A extensão brasileira tem sua história vinculada à prática agrícola que passou por um processo de mudança devido à industrialização. Os países industrializados puderam realizar um projeto agrícola impulsionado pela política econômica que produzia mercadorias (ou pacotes produtivos) em larga escala. Seguindo esta via, a política pública da década de 60, desenvolvida pela EMBRATER (Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural), encarregava o profissional de ATER de realizar a implementação do pacote tecnológico oriundo da revolução verde. Este órgão originou o que hoje é conhecido como EMATER. A extensão rural contemporânea foi fortemente moldada segundo esta prática, em que o agricultor rural é visto como produtor, indicando o trabalhador como reprodutor da tecnologia que visa a implementação de uma alta produtividade. A idéia de “produtor” descaracteriza o trabalhador do campo como agricultor. “Produtor” remete-nos à idéia de que ele deve dar conta dos meios de produção e dos conhecimentos, quando sabemos que uma relação humana de troca e produção parte do entendimento da realidade do agricultor, buscando conservar o caráter do trabalho do campo como trabalho realizador.

A prática da extensão não se restringe ao implemento da produtividade rural. Podemos pensar outras instituições que também vêm refletindo sobre o papel da extensão, como a universidade. A atuação universitária se dá através de três linhas de ação: extensão, pesquisa e ensino, o chamado tripé universitário. Contudo, a maneira que esse tripé tem sido aplicado privilegia o ensino e a pesquisa, e a prática da extensão não se define com clareza. Ora a extensão se confunde com o ensino (ao se relacionar com o conhecimento como transmissão de informação e não como uma relação de comunicação), ora se confunde com a pesquisa (configurando-se em uma coleta de dados e uma pretensa neutralidade).

O terceiro setor, em nossos dias, também atua significativamente na extensão. Estima-se que 60% da ATER é realizada pelo terceiro setor. Nós, enquanto uma das instituições do terceiro setor, entendemos a extensão enquanto uma relação do conhecimento científico profissional com aplicabilidade real e problemática, em contato com grupos de saberes populares e tradicionais. A forma de estabelecer esse diálogo entre saberes é interventiva, assumimos uma idéia contrária a da neutralidade, propondo um diálogo cuja parcialidade diz respeito aos impactos e conseqüências concretas tanto na nossa percepção, enquanto IA, quanto na vida do agricultor.

Buscamos participar e atuar problematizando o real, através de formas de identificar e perceber as múltiplas determinações, que muitas vezes não se evidenciam automaticamente e sim de forma confusa e contraditória. Uma extensão agroecológica propõe uma nova forma de relação com o conhecimento, que rompe com a lógica da reprodução unilateral. Neste sentido, por mais que seja necessária uma mudança de modelo tecnológico, uma simples substituição do pacote convencional pelo da produção orgânica mantém o agricultor na mesma condição.

A partir do momento em que percebemos que o simples fato de estarmos lá, já é intervir, nos cabe agora refletir (e discutir) a forma que se dá essa intervenção. No entanto, o compromisso assumido deve ser recíproco, ou seja, ambos os grupos envolvidos devem se identificar com a problematização da atuação em si e da realidade experienciada. Nossa atuação se dá em ambientes de opressão, e ainda que tenhamos uma idéia de como a opressão acontece, não sabemos como cada um (comunidade, sujeito) a experiencia.

Esse rompimento da relação unilateral conseqüentemente rompe com a relação sujeito/objeto, passamos então a construir uma relação sujeito/sujeito. Não se trata de uma reprodução de fórmulas e formas, mas de práticas participativas que permitam a todos os envolvidos perceber o real problematizando-o, assumir sua parcialidade diante da realidade problematizada e podem construir vias de ação.

Por mais que tenhamos ambições de realizar um trabalho participativo, e que desse possamos caminhar para as soluções mais adequadas, ainda assim, é importante que reconheçamos os limites da intervenção da extensão. Essa construção conjunta encontra limites concretos entre extensionista e agricultores ou comunidade rural. Uma vez realizado o trabalho que nos é possível é importante que esse trabalho tenha como conclusão uma autonomia da comunidade. Entretanto, essa autonomia é relativa, não encerra no vínculo de trabalho, transforma-se em elo entre comunidade e Instituto Agroecológico. Assim, o vínculo passa a ser de parceria política.

Após este percurso, retomamos as questões levantadas no começo do texto. A prática do extensionista tem um compromisso com a população que trabalha, mas também tem o compromisso com a comunidade acadêmica que o cerca. A intervenção do extensionista não se encerra no campo, a reflexão sobre a prática faz parte da extensão. Esta produção de conhecimento e divulgação do trabalho realizado funciona também como mediação entre população e poder público. Podemos entender a extensão como práxis.

“Educar e educar-se, na prática da liberdade, é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem – por isso sabem algo e podem assim chegar a saber mais – em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que pouco sabem, possam igualmente saber mais”. Paulo Freire

Agroecologia ?!

Agroecologia é uma ciência que se propõe a compreender os agricultores e o meio onde eles estão produzindo, buscando interação harmônica entre organização e acesso aos meios de vida, ou seja, formas de produção e meio ambiente. É importante, entretanto, que uma questão seja desde já esclarecida: a de que Agroecologia é um saber que ainda está em debate na sociedade civil, universidades, movimentos sociais, assim como no Instituto Agroecológico.


No decorrer dos anos, vários debates vêm sendo travados na busca de compreender essa relação do homem com o seu meio. Conforme a ciência vem percebendo a complexidade destes debates, vem surgindo um novo paradigma de que a ciência não é mais a detentora da verdade, mas que essa verdade está sempre sendo descoberta ou reinventada pelas diversas formas de saber. Todavia, não se trata apenas de uma forma de saber, mas de fazer. E é nesse cenário que se insere a Agroecologia, questionando o grau de entendimento do processo da produção, buscando um produtor que tenha consciência da qualidade do manejo integrado da produção e do cultivo, e que não busque apenas uma troca alienada de um pacote tecnológico convencional por um orgânico.


É no ambiente histórico de contraposição à chamada Revolução Verde que surge o pensamento Agroecológico, sendo, assim, importante conhecer um pouco dessa forma de produção. A chamada Revolução Verde propunha produzir alimentos em grande escala e em pouco tempo, afirmando que esse incremento de produção sanaria a fome do mundo. Para tanto, ela se utilizava de uma tecnologia, que compreende maquinários e insumos químicos, os quais não eram, então, apresentados como prejudiciais ao homem e ao meio. Além disso, a forma social em que se organiza o trabalho é realizada em uma área extensa (conhecida como latifúndio), de maneira semelhante à produção industrial, onde o trabalho é simplificado, sendo em sua maior parte executado por máquinas. Nesse caso, a experiência da produção não é vivenciada pelos trabalhadores (diferentemente da produção rural tradicional), tampouco seus ganhos são partilhados entre os trabalhadores envolvidos, ficando concentrados apenas nas mãos do proprietário.

Esse pacote produtor se impunha dominante e se anunciava em nome do progresso. Sendo uma forma rápida e fácil de produção, muitos dos pequenos agricultores aderiram a essa forma de cultivo, tendo em vista uma inserção no mercado que lhes exigia uma produção cada vez maior e de pronta entrega. Umas das conseqüências foi o acirramento da concorrência entre os pequenos produtores e, conforme uns se destacavam, outros eram mal sucedidos, recorrendo a outras formas de organização para a sobrevivência. O Estado, peça fundamental para compreensão deste cenário, impunha essas formas de produção através de serviços como a ATER (assistência técnica e extensão rural) ou de políticas públicas que possibilitassem às famílias conservarem sua condição de exército de mão-de-obra reserva.


As diversas conseqüências causadas por esse modelo produtivo, tais quais o desmatamento, a poluição da água e do solo, alimentos intoxicados, precarização abusiva do trabalho e perda da biodiversidade evidenciaram-se, fazendo com que medidas precisassem ser tomadas. A partir de então, novas propostas vêm sendo apresentadas, buscando suprir os prejuízos causados ao meio ambiente. Uma das formas encontradas de enfrentamento foi a preservação de áreas naturais intocadas, que compreendia a relação do homem como exploratória, e a única solução possível era um distanciamento do homem das áreas a serem preservadas.

Além disso, várias formas de cultivo foram sendo desenvolvidas, formas que visavam uma redução do impacto sobre o meio ambiente e alimentos mais saudáveis. A relação do homem com a natureza também começava a ganhar um novo tom, buscando uma maior preocupação com as ações e suas conseqüências. Estas, entretanto, não eram causadas por uma relação hermética homem-propriedade, mas por uma relação econômica que acaba se impondo aos indivíduos, exigindo dos produtores uma concorrência de mercado cuja lógica se preocupa exclusivamente com o aumento do lucro, descartando a possibilidade de conservação dos recursos.


Os pequenos agricultores começaram a ser eliminados na concorrência, restando a eles se inserirem na divisão social do trabalho como trabalhadores, o que, na maioria das vezes, ocorreu de maneira informal e precária. Em algumas ocasiões, era possível a esses trabalhadores retornarem à propriedade na tentativa de reerguê-la, junto à sua família. Dadas as condições das famílias, passaram fazer ações reivindicatórias, através de movimentos sociais (Via Campesina), organizações de trabalhadores rurais, movimento dos pequenos agricultores, entre outros, obrigando o Estado a alguma resposta, muitas vezes imediatistas. Passaram a surgir políticas públicas e instituições que visavam contribuir com a melhoria das condições do trabalho no campo.

Essas medidas buscavam colaborar com melhoria das condições de vida. Ações voltadas para a saúde, alimentação e educação também foram exigidas pelos trabalhadores do campo, entretanto, as políticas públicas são realizadas (quando realizadas) em sua maioria de maneira muito precária. A região urbana (cenário que deve ser contemplado pela agroecologia) também sofre com a precariedade desses serviços, de tal sorte que o resultado dessas medidas é apenas a amenização e contenção dessas exigências e não a melhora do funcionamento do serviço público.


E o Instituto Agroecológico acredita ser esse o contexto histórico, buscando contemplar estes vários setores da organização da vida, que compõe a agroecologia. E é importante lembrar que a agroecologia não encontra fronteiras rurais ou urbanas, ao contrário, compreende essas relação num todo, cujas exigências e as obrigações devem ser partilhadas por toda a sociedade, bem como os ganhos do trabalho realizado com qualidade, igualdade e ecologicamente sustentável.